Autor: Cláudio Cassimiro Dias
O inverno de 1997 chegou pesado em Minas Gerais. Não era só o frio cortante das madrugadas de Belo Horizonte que fazia os ossos doerem, havia algo diferente no ar, uma inquietação que percorria os corredores dos quartéis como um sussurro.
Nos alojamentos, os rádios chiavam com notícias sobre reajustes para outras categorias do funcionalismo público. Lá fora, o povo protestava por salários e direitos. Dentro dos quartéis, os homens fardados, que todos os dias enfrentavam o perigo, contavam moedas no fim do mês.
“Até quando?”, perguntou um sargento, enquanto ajeitava o boné gasto. Ninguém respondeu. O silêncio pesava mais do que o colete à prova de balas.
As conversas começaram baixas, quase proibidas. Falava-se em parar. Não por raiva, mas por necessidade. “Se o Estado não ouve o nosso pedido, que ouça o nosso silêncio”, disse outro policial, num tom calmo, mas firme. A frase correu de boca em boca, e, em poucos dias, os quartéis começaram a se fechar.
Viaturas ficaram paradas. Fardas dobradas sobre as camas. E, nas ruas, o medo começou a circular sem escolta. A população sentia: algo grande estava para acontecer.
O governo, liderado por Eduardo Azeredo, reagiu rápido. “Militares não podem fazer greve”, lembravam as autoridades, como quem tenta conter uma represa prestes a romper. Mas a insatisfação não se dobrava às leis escritas no papel. Era feita de carne, suor e contas atrasadas.
Em Belo Horizonte, o clima chegou ao limite. Na Praça da Liberdade ocorreu a morte do Cabo Valério atingido por um disparo de arma de fogo. Ele morreu por uma causa, tombou ao solo, sem ter tempo de entender o motivo de seu fim, na terra.
Do lado de fora, as tropas de elite se aproximavam. Havia ordens para retomar o controle. Era um cenário impensável: irmãos de farda apontando armas uns para os outros.
Quando o primeiro disparo ecoou, ninguém soube dizer de onde veio. Apenas se ouviu o som seco dos tiros cortando a noite fria. Depois, gritos. Correria. O chão do quartel tremeu como se a própria instituição estivesse ferida.
Horas depois, o silêncio voltou, um silêncio pesado, carregado de vergonha e dor. O movimento seria sufocado, e muitos dos seus líderes presos, expulsos ou transferidos. Mas algo havia mudado para sempre.
Os jornais do dia seguinte falavam em “rebelião”. Mas quem viveu sabia que era um grito por dignidade.
“Não lutamos contra o povo”, disse um dos grevistas anos depois. “Lutamos por poder viver como ele, com o mínimo de respeito.”
A greve terminou, mas suas marcas ficaram gravadas nas memórias e nas paredes dos quartéis. E, desde então, em cada novo inverno, quando o frio retorna a Minas, há quem jure ainda ouvir o eco distante das vozes de 1997 — pedindo, entre o ruído do vento e o silêncio das ruas, justiça e reconhecimento.
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