terça-feira, 15 de dezembro de 2015

A NECESSIDADE DO CICLO ÚNICO DE POLÍCIA DEMONSTRADA NO CASO FÁTICO




Por Álvaro Soares*

O Ciclo Único de Polícia é a mais atual proposta de modificação das estruturas policiais brasileiras. Posta em apresentação ao plenário no final de 2014, tal proposta de emenda constitucional tem sido muito discutida, sobretudo, pelos profissionais de Segurança Pública, que vivenciam, diariamente, as falhas do atual “modelo”. Se é que podemos denominar as atuais fases da persecução penal como modelo.
A proposta constitui alteração ao art. 144 da magna Constituição. Segundo a qual, os órgãos de Segurança Pública que iniciarem a persecução penal (seja por flagrante ou por Investigações), caminharão com o evento até que seja entregue ao Poder Judiciário, via Ministério Público. Assim, o Policial Militar que flagrar um crime, será o responsável por toda a formalização do evento, até entregar o preso e o Auto de Prisão em Flagrante ao representante do Ministério Público.
O atual modelo é digno de vastas críticas, sobretudo, por aqueles que sofrem “na pele” as mazelas do descrito no art. 144, CF. O Policial Militar que flagra um crime é obrigado a confeccionar um relatório pormenorizado sobre o evento (REDS), passá-lo à Autoridade de Polícia Judiciária (delegado), responsável por confeccionar o mesmo conteúdo, em modelos de documentos diferentes (Auto de Prisão ou Apreensão em Flagrante –APF) e, posteriormente, encaminhá-lo ao Poder Judiciário. Embora o processo esteja resumido em algumas linhas, é mais complexo que possamos imaginar. Há muito mais demanda que os delegados possam abstrair. Assim, o Policial Militar que foi exitoso em sua ação tem que esperar várias horas na porta das delegacias, com o preso em sua responsabilidade. Não foram poucas as vezes em que, devido as péssimas condições das delegacias, sobretudo dos locais onde ficam os presos sob responsabilidade da Polícia Militar, presos conseguiram evadir, depois de horas aguardando. Pior disso: o Policial Militar costuma ser penalizado por tal fato, independente das alegações de desestruturas. Ademais, além de ficar horas aguardando a transferência dos mesmos dados relatados no REDS ao APF, o policial, após alguns meses, é obrigado a comparecer em juízo, onde, novamente, é obrigado a dizer tudo aquilo que já foi relatado em outras duas oportunidades. Isso, seja qual dia for (folga, descanso, compromisso inadiável etc). Percebe-se, dos prejudicados, o Policial Militar é o que mais sofre as mazelas do sistema atual.
Mesmo com a visível lógica de aprovação maciça entre os profissionais de Segurança Pública, há aqueles que não aceitam o novo conceito de polícia proposto. Pelo que se pode perceber, a maioria das críticas vem de parte do atual sistema que é valorizada e sente que vai perder prestígio com o futuro modelo de polícia. O que, data venia, não é compatível com o proposto na emenda. Cada instituição será incumbida de investigar o evento que advir de sua competência e iniciativa, sendo, sobretudo, evidenciada a atuação conjunta. O atual modelo, torna a Polícia Ostensiva dependente da Polícia Judiciária, motivo pelo qual esta fica cada vez mais sobrecarregada. Além de investigar, a Polícia Judiciária tem que suportar a demanda da outra polícia. Resulta no raro resultado de investigações policiais.
Outra pequena parte dos conservadores entende que o ciclo único dá precedentesaos abusos de autoridades e outros ilícitos. Embora cada dia menos tem-se visto excessos por parte de profissionais de Segurança Pública, a cessão dos abusos deve ser uma constante preocupação das autoridades. Não há relação alguma entre a atuação única do policial e abusos por parte do profissional, até porque, o controle da atividade policial continuará sendo realizado, pelos que têm tal missão. Será, inclusive, mais efetivo, pois o Ministério Público atuará imediatamente ao evento e sentirá o ardor e o odor da realidade.
Os profissionais de Segurança Pública começam a sentir necessidade de mudanças na persecução penal, pois, cada dia mais, as Organizações Criminosas estão se solidificando no solo fértil do modelo atual, regado com inertes repressões e enérgicas falhas. Repressões e falhas tais como o exemplo prático que relato, ocorrido há alguns dias:
Pela tarde, fomos acionados a comparecer a um evento classificado como Maria da Penha. Após alguns minutos, estacionamos em frente ao endereço denunciado, onde encontramos uma mulher de meia idade, a quem chamarei de Carmem, e três garotas, uma adolescente e as demais crianças. A Carmem nos disse que tinha sido agredida por seu companheiro, a quem chamarei de João. João a tinha empurrado nas escadas. Visivelmente, a Carmem estava com a face do lado direito machucada, com maior intensidade no olho. A experiência nos leva a concluir que ela foi agredida com socos, o que, geralmente, ocasiona machucados no olho esquerdo da vítima. Mas, respeitamos a versão dela. A adolescente que acompanhava a nossa conversa, a todo momento se demonstrava agitada e revoltada com toda aquela situação. Em conversa com a vítima, explicamos a ela a necessidade de ela mesma dar prosseguimento com a ação, provocando a Autoridade de Polícia Judiciária. Explicamos, também, que a nossa reação, em vista a uma possível resistência do agressor, seria de utilizar os meios que tínhamos para concluir o que preza a legislação, e que, provavelmente, o companheiro dela ficaria preso, por alguns dias. Ao saber disso, a Carmem mudou de versão e disse que não era para tanto e que ela só queria que retirássemos ele do local e determinássemos que ele não mais voltasse à residência. Explicamos, mais uma vez, que nós não éramos a autoridade competente para determina-lo o afastamento do lar, e que a providência legal seria conduzi-lo, ainda que coercitivamente, à delegacia. Ela nos disse que não gostaria que fossem tomadas quaisquer providências. Como a notitia criminis já nos tinha chegado, optamos por tentar convencê-la a aceitar a nossa ajuda. Pois, tratando-se de crime de ação pública, a vontade da vítima, teoricamente, se torna desnecessária. Digo teoricamente, porque na prática as coisas são muito diferentes. Imagine se tivermos que, coercitivamente, conduzir o autor e ela à autoridade de Polícia Judiciária. Quem seria o verdadeiro denunciado na história? As versões se modificariam e as ações coercitivas da nossa parte constituiriam a maior parte das peças processuais. A Carmem, após nossa tentativa de resolver pacificamente o evento, disse que iria trocar de roupas. Neste momento, já sabíamos que o autor dos fatos estava dentro da residência. Na realidade, Carmem foi tentar convencer o João a não reagir e acompanhar-nos para as providências. Minutos após, voltou ela com a mesma roupa e dizendo que não foi agredida. E que não queria nenhuma providência por parte da polícia. A adolescente já nos tinha relatado que a sua mãe tinha sido agredida e que temia a próxima reação do João. Decidimos, contudo, que o mais prudente a fazer era conversar com o João, e convidá-lo a nos acompanhar, voluntariamente, para a delegacia. Por sorte, João se dispôs a ir na Unidade de Pronto Atendimento, na viatura policial, onde a Carmem foi atendida. Na Delegacia, a Autoridade de Polícia Judiciária chamou-nos e chamou a vítima, para relatar o ocorrido. Isso, informalmente. A Carmem, após cientificada que o João provavelmente seria preso, até o pagamento da fiança, disse à autoridade que os machucados ocorreram porque ela tentou agredir o João e, para se defender, João a empurrou, motivo pelo qual ela se desequilibrou e caiu das escadas. Versão esta totalmente diversa da que ela nos apresentou na primeira conversa e muito distinta do que a experiência nos disse ser verdade. Nenhuma das versões foi testemunhada, porque o local não é muito habitado, tampouco, movimentado. Desprende dos fatos que as versões modificaram e, caso a Autoridade de Polícia Judiciária acreditasse na última versão da Carmem, nós policiais teríamos feito uma prisão ilegal. Sabemos que isso, atualmente, tem sido interpretado de forma ridícula e gerado problemas processuais a profissionais que atuam com boa fé. Há várias Carmens e vários Joãos pelo Brasil. Há vários profissionais que atuaram em eventos semelhantes e não tiveram o mesmo desfecho que o nosso. Isso porque a fé pública do policial, por si, não tem sido suficiente para combater versões distintas.
Aplicado o fato ao novo modelo da polícia brasileira, o policial que fez o primeiro contato com a vítima é o responsável pela persecução penal, até a entrega dos autos à Autoridade de Polícia Judiciária. Ou seja, o REDS, como utilizado em Minas, deverá passar por mudanças que permitam a vítima ratificar seus ditos ao policial, assinando o seu depoimento. Em certos casos, deve o estado propiciar que o depoimento da vítima, da testemunha ou do autor seja reduzido a termo e assinado no próprio local dos fatos, onde as versões são originais e ditas no calor e no odor da realidade. Possibilidade esta que, se aplicada ao caso fático acima, tornaria a ação ainda mais legítima. Sobretudo, se fosse necessário o uso de força.


*Policial Militar da Ativa. Formado no Curso Superior em Segurança Pública, pela Escola de Formação de Sargentos de Minas Gerais. Bacharelando em Direito, pela Faculdade Pitágoras.

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